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O adeus de Goró

14 de junho de 2018

Goró morreu como queria, rodeado de garrafas de aguardente e de amigos de rostos inchados, pescoços finos e barrigas proeminentes. Gente que é olhada de viés pelas pessoas tidas como normais, mas que é muito mais feliz do que pode imaginar a rafaméia ensandecida, exatamente porque é verdadeira e faz o que bem deseja.

Goró se encantou para esse mundo porque, com certeza, faltava um expert em aguardente, um general de cinco estrelas em condições de por ordem na casa celestial.

Filosofou até na hora de fechar os olhos, dizendo para dona Biu, sua generosa e sempre fiel consorte, que havia chegado o seu momento. E ainda teve topete para desafiar a enfermeira que teimava em lhe enfiar uma mangeira por dentro das ventas, dizendo para ela que não pretendia morrer com o nariz entupido. E morreu na mesma hora, sem choro nem vela, lamentando apenas que não lhe tenham servido a saideira, a última das moicanas, aquela que lhe molharia a goela e esquentaria suas tripas, antes que as lombrigas do Boa Sentença as devorassem.

Foi um velório à altura do grande homem. Ali estavam os companheiros de jornadas antológicas, amigos do copo e das madrugadas indormidas, dos banhos de rio e das buchadas que só dona Biu sabia cozinhar, das anedotas que matavam de rir quem as escutassem, das carraspanas que duravam de carnaval a carnaval e só não causavam ressaca porque a miserável morria logo com o raiar do sol, debaixo de uma gostosa talagada de Engenho do Meio.

Goró sorria dentro do caixão. Juro que vi seu sorriso matreiro, safado, enganador, mangando das velhas que rezavam o terço encomendando sua alma e pedindo salvação para aquele perdido no vício. Aposto como teve vontade de beliscá-las, chamá-las de mal amadas, mostrar-lhes que a verdadeira felicidade é alcançada por quem não tem medo de viver.

Aníbal, que viria a ser o próximo da lista, guardava sua garrafinha de cana no bolso da bunda e  disse que teve vontade de dar um gole ao ilustre morto, só não o fazendo porque Dona Biu não desgrudava dele. Lá fora, debaixo do pé de sombreiro que Goró plantou, regou e fez crescer, o resto da turma se preparava para romper a noite de sentinela bebendo o “todinho” que Goró imortalizou.

Em vez de choro, cuidava-se de escolher o sucessor do rei e nenhum candidato se atrevia a inscrever-se, em respeito à sua presença na sala principal da casa. E se ele levantasse de repente para recriminar os que desejavam substitui-lo sem haver a certeza absoluta de sua partida definitiva?

Somente quando o carro da funerária encostou para levá-lo ao cemitério, é que se concluiu que Goró estava indo de vez habitar outras paragens, preparar o terreno para os próximos viajantes, os futuros moradores da casa desconhecida, do bar onde se bebe e não se morre mais.

E o percurso do Funcionários II até o Boa Sentença foi feito à pé, ao som de Adeus Ingrata.

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6 Comentários

  • Reply Angela 14 de junho de 2018 at 10:23

    Crônica ou parte do próximo livro?

  • Reply 1berto de almeida 14 de junho de 2018 at 10:24

    apenas dizer que achei a história de goró arretada e bem escrita. negar a ótima qualidade do texto nunca hei de. nenhuma dúvida: um dos melhores que este MB tem passado o seu olhar curioso, mas nada aperreado. putabraço!

  • Reply 1berto de almeida 14 de junho de 2018 at 10:25

    “Goró sorria dentro do caixão. Juro que vi seu sorriso matreiro, safado, enganador, mangando das velhas que rezavam o terço encomendando sua alma e pedindo salvação para aquele perdido no vício. Aposto como teve vontade de beliscá-las, chamá-las de mal amadas, mostrar-lhes que a verdadeira felicidade é alcançada por quem não tem medo de viver.”

    apenas dizer que achei a história de goró arretada e bem escrita. negar a ótima qualidade do texto nunca hei de. nenhuma dúvida: um dos melhores que este MB tem passado o seu olhar curioso, mas nada aperreado. putabraço!

  • Reply Evandro Oliveira 14 de junho de 2018 at 15:02

    Parabéns pelo texto. excelente.

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