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Tudo na vida era uma festa

30 de abril de 2018

Miguel Lucena Filho – Delegado de Polícia no Distrito Federal, jornalista e poeta.

Nós éramos muito pobrezinhos, morávamos no bairro Nova Brasília, uma extensão da Rua do Cancão, e brincávamos de caçar lagartixas na Pedra do Urubu.
As brincadeiras eram de picula, esconde-esconde, polícia e bandido, faroeste, bila (bola-de-gude), pião, triângulo, roleta (com o e aberto) e troca-troca.
Os nossos brinquedos eram tirados da natureza: o boi de mamão, o cavalo de pau, o pião de goiabeira, o caramujo, o estilingue certeiro e os aviõezinhos de tanajura.
Tudo era muito simples, sem luxo. O velho Migué Fotogra usava camisa volta-ao-mundo e dona Nila mandava fazer dois vestidões de fazenda barata para passar o ano, sacrifício necessário para que não faltassem feijão e passarinha na mesa dos bruguelos.
Apesar de toda essa simplicidade, a vida era repleta de alegrias. Não havia um Natal em que, antes da meia-noite, o velho Migué não descesse a Rua Grande trazendo galinha assada e bolo de puba para a ceia com a mulher e os filhos.
Eu era pequenininho e já declamava cordéis e sonetos nas festas a pedido do meu pai, ganhando como recompensa o tão raro guaraná e a bolacha Maria a que só tinham direito os filhos adoentados.
Os moleques do Cancão e da Nova Brasília tinham mania de sentar em roda para contar mentiras e pabulagens depois das brincadeiras. Ficávamos lá até meia-noite, quando as mães vinham buscar-nos com uma chinela na mão.
Disputávamos a bufa mais podre, quem tirava mais som do sovaco, a piada mais engraçada, a melhor embolada e quem era mais rico.
Mais rico? Éramos todos pobrezinhos, mas disputávamos, sim, quem era o mais rico. E a medida da riqueza era a comida do dia.
– Lá em casa, foi fava com tripa e batata doce – gabou-se Val de dona Alda.
– Coitado, nós comemos foi preá com cuscuz e macaxeira – estufou o peito Zé Neno de Jandira, aquele a quem Diolindo Mandaú xingou por ter comido uma saca de açúcar da sua bodega.
– Ainda bem que hoje a gente comeu feijão com bredo – disse eu, com orgulho, na ingenuidade de mais novo da turma, para gargalhada geral.
As coisas materiais eram muito distantes. A primeira vez em que o meu pai me levou ao Cine Santa Maria, criminosamente destruído tempos depois e transformado em loja, causou-me uma impressão tão forte que eu não consegui dormir naquela noite. Quando o velho Migué conseguiu dinheiro para assentar o piso da nossa casa, dormimos sob pés de sirigüela e goiabeira na maior felicidade. Verdade, a nossa casa era de chão de barro batido. O piso de cimento só chegou por volta de 1972, quando o homem já havia pisado em solo lunar.
A chegada da geladeira Cônsul, azul, foi um acontecimento digno de registro na Rua Presidente Kennedy. As mulheres e os meninos fizeram filas para ver aquela maravilha, só comprada porque dona Nila convenceu seo Migué a contrair a dívida em Patos para saldá-la com a venda de geladinhos (dindins ou tubibas). Passei dois anos vendendo os picolés de saquinhos para pagar as prestações da geladeira e conseguimos vencer a batalha.
Em 1970, durante a Copa do Mundo, Princesa tinha somente um aparelho de televisão. Pertencia a Valdemar Abrantes e foi posto na praça principal da cidade para a transmissão dos jogos da Copa. Era preferível o rádio, porque ninguém conseguia ver nada, contavam os meninos um pouco mais velhos.
Os meus primeiros contatos com as letras ocorreram folheando os livros de Biologia de Damião Antas. Ele ficava me mostrando as letras e as figuras e pronunciando as palavras, fazendo associações. Meu primeiro professor foi embora e um ano depois, de volta a Princesa, surpreendeu-se quando aquele bruguelinho buchudo e cabeludo, com o bilau de fora, chegou lendo para ele uma revista em quadrinhos.
– Só pode ser decorado! – exclamou. E deu-me um livro de Bioquímica para ler e enquanto eu lia as lágrimas desciam dos seus olhos de doutor, era a felicidade do primeiro mestre se encontrando com a alegria do primeiro aluno, que só precisou de um empurrãozinho de dona Maria Ramos para completar o aprendizado iniciado na casa de dona Laurinda.
Veronese foi outro adulto a me ensinar coisas de gente grande. Ensinava-me versos de Zé Limeira, o poeta do absurdo, e às vezes eu os declamava sem me preocupar com ambiente e o conteúdo. Certa feita, declamei verso que falava sobre a transa de um jegue com uma jumenta e quase levo uma surra do meu pai, porque foi dito na frente de uma dama da cidade, Carminha Pires, prima da minha mãe, que nos visitava.
Com Zé de Sebastião Chico, inventamos festas de Carnaval e mela-mela com farinho de trigo. Com Paulo Antas, fizemos os primeiros versos sobre as coisas de Princesa e região. E com Ernando de Antonio Belo, abandonei meu mundo de coroinha para conhecer a fundo os segredos do candomblé de Maria de Geraldo Dentista.
Com o tempo, já meio taludo, arranjei uma máquina Olimpus Pen e virei retratista, como o meu pai e Galego, um dos meus irmãos mais velhos. Como a concorrência era grande, descobri uma forma de ganhar dinheiro mais rápido: fiz amizade com as raparigas e passei a fofografá-las semi-nuas, no cabaré de Estrela, escondido da Polícia, por ser menor,  e vendia as fotos aos matutos pelo dobro do preço, como cartão-postal.
Em Quixaba, tentei enganar as pessoas, batendo retratos só com o flash, sem filme, mediante o pagamento de metade do serviço. Quando cheguei em Princesa e meu pai descobriu a esperteza, deu-me uma lição de moral que ficou para sempre: obrigou-me a devolver o dinheiro, tintim por tintim, e pedir desculpas aos clientes.
– Bruga, o homem se mede pela honestidade – ensinou o velho Migué, que morreu pobre mas venerado pela firmeza de caráter.
Do grupo Gama e Melo e do Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho, finquei pé no meio do mundo e hoje estou aqui, na Capital Federal, morrendo de saudades de um monte de coisas, das pescarias com o velho Migué, das canções cantadas por dona Nila, dos versos declamados nas festas com sabor de guaraná, das parcerias da infância, da farofa d´água com cebola roxa de Tia Jovelina, dos banhos do açude velho, do Esporte Infantil Princesence de Dió de Vitalina, dos chamegos de Briba de Zé Carnaíba, das tiradas de Luzim de Calu, dos bonecos de Pedro Fogueteiro e do som da sanfona choradeira de Xixica da Serra do Gavião. Isso, sim, é que era um mundo de festa!

Miguezim de Princesa

Enviado por Miguezim de Princesa em 30/07/2017
Código do texto: T6069486
Classificação de conteúdo: seguro

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2 Comentários

  • Reply Eduardo Valois 30 de abril de 2018 at 18:49

    Muito bem, Tião. Linda a história do seu irmão e já estava com saudades dessas escritas do seu blog. Por mais postagens assim e menos postagens políticas.

  • Reply Joca da burra 30 de abril de 2018 at 20:35

    Muita luta , mas valeu a pena.

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