ALGUMAS LINHAS SOBRE MEU PAI
Papai, Miguel Vicente de Lucena, nasceu em 1917 em União dos Palmares, Alagoas. Era filho de Vicente André de Lucena e de Maria Eurides da Conceição. Nasceu agricultor e viveu da agricultura, mas quando se pôs rapaz aprendeu a profissão de fotógrafo ambulante e como fotógrafo percorreu os Estados de Pernambuco e Paraíba.
Quando nasci em 1951 meu avô já não mais existia, Vó Maria viveu por muito tempo ainda, mas nunca fomos íntimos. Ela morava com minha Tia Zefa e só nos visitou uma ou duas vezes.
Vô Vicente e Vó Maria tiveram quatro filhos, dois homens e duas mulheres.
O mais velho era José Lucena, meu pai, Miguel, era o segundo, Tia Maria era a terceira e a caçula era Tia Zefa.
Vi tio Zé somente uma vez, eu já casado e morando em João Pessoa e ele internado no Hospital Santa Isabel vítima da doença que o levou à morte.
Contava meu pai que esse Tio brigou na revolução de São Paulo. Pertencia ao contingente do Nordeste que foi pra lá derrotar os paulistas. Ele operava uma metralhadora e matou muita gente.
Logo cedo foi morar em Bonito de Santa Fé e constituiu numerosa família. Era o oficial de justiça da comarca.
A caçula, Tia Zefa, morou em Princesa, onde conheceu Bastos, seu esposo. Bastos era eletricista e tinha Pereira no sobrenome. Não sei se o Pereira dele era o mesmo do coronel Zé Pereira. Com os meninos crescidos, Zefa e Bastos foram embora de Princesa, fixaram residência em Bezerros, Pernambuco, onde estão enterrados.
Tia Maria casou com Messias e morou a vida inteira em Afogados da Ingazeira. Tia era bonachona e costumava nos dar presentes. Ainda lembro das camisas que costurou para mim e Edmilson vestirmos nas festas de fim de ano. O mesmo modelo, o mesmo pano e as mesmas listras. Parecia uma farda, mas gostamos tanto que vestimos nas festas e depois delas.
Sobre Vó Maria, contava papai que certa vez a Polícia prendeu Vovô Vicente e o levou para uma cidade próxima. Vó Maria correu por dentro dos matos para chegar antes da Polícia e pedir a proteção a um parente poderoso. Rasgando o mato na escuridão de breu, viu de repente seus passos interrompidos por um fino cipó. Não contou conversa, torou o cipó com os dentes e seguiu adiante. Só que o cipó era uma cobra e ela nem percebeu.
Meu pai ficou viúvo muito jovem, não tinha 30 anos. Sua primeira mulher o deixou com um filho de quatro anos para criar. E foi com esse filho pequeno que ele chegou à Princesa na década de 40 para visitar a irmã, Zefa, casada e com endereço na Rua do Cruzeiro.
Estava sentado na calçada da casa em animada conversa com a irmã e viu Emília passar em direção à escola, onde dava aulas.
A moça bonita chamou sua atenção. Perguntou se a irmã a conhecia e, diante da resposta afirmativa, perguntou o endereço dela e foi pedir a sua mão em casamento.
Quando Emília retornou da aula já estava noiva sem ao menos conhecer o seu pretendente.
Casaram-se e tiveram 12 filhos, quatro morreram ao nascer, oito se criaram, aos oito somou-se o filho do primeiro casamento que, de tão novo, acostumou-se a nova mãe e esqueceu a mãe falecida.
E assim nasceu a família de Miguel e Emília Lucena.
José, o mais velho, filho de Quitéria, primeira esposa de Miguel. Não se interessou muito pelos estudos, logo cedo começou a trabalhar com o pai, primeiro na roça, depois na fotografia lambe-lambe. Aprendeu a tocar cavaquinho e passou a integrar a orquestra de Manoel Marrocos. Irrequieto, procurou outras atividades, aprendeu a dirigir, virou motorista de carro grande, trabalhou no DNOCS, na Camargo Correia e se aposentou como motorista de ônibus da CMTC em São Paulo. Já com mais de 65 anos, retornou à Paraíba e findou seus dias como dono de um pequeno bar no Conjunto Ernesto Geisel, o Bar do Zezão, ponto de encontro dos bêbados e dos boêmios, dos poetas e dos sem dinheiro. A todos recebia e brindava com a especialidade da casa, o famoso “pau dentro”, uma bebida à base de cachaça e de raízes que, além de embebedar, curava os males do corpo.
Eu sou o mais velho da segunda família. Depois de mim veio Edmilson, a quem chamamos de Bibiu, dois anos mais novo, meu companheiro de longas caminhadas, desde a infância até a chegada dos cabelos brancos. Bibiu nunca gostou de roça. Quando era obrigado a dividir tarefas com os demais irmãos no plantio de milho e feijão era o primeiro a terminar sua parte. E após as chuvas, as sementes denunciavam o crime praticado pelo irmão esperto: em determinada cova nasciam centenas de pés de milho e feijão. Ele derramava sua cuia de sementes num buraco só e ia embora.
Morou em São Paulo, retornou à Paraíba, se fez jornalista e entrou para o serviço público como funcionário da Câmara Municipal de João Pessoa.
Valdemir, dois anos mais novo do que Bibiu, morreu aos 54 anos. Era diabético. Um coração de ouro. Era chamado de Galego por ser o único loiro da família. Foi fotógrafo como o pai e trabalhou na Rádio Tabajara da Paraíba.
Depois do Galego veio Francisca, a quem chamamos de Nininha. Professora formada, foi casada com o agricultor e empresário Sebastião Henrique Pereira, morto em acidente de carro. Já fez de tudo um pouco: ensinou, dirigiu escolas, foi secretária de Prefeitura e chegou a disputar o cargo de vice-prefeita de Princesa.
Carlinhos morreu jovem, aos 30 anos, assassinado. Foi uma perda que doeu muito. Seu matador era um magarefe da Feira de Oitizeiro, que depois do crime sumiu do mapa e nunca mais apareceu.
Dorinha, como os demais, veio morar em João Pessoa após a morte de papai. Ainda a acho a mais bonita entre as belas filhas que Papai e Mamãe botaram no mundo.
Miguel é o caçula dos homens, a das mulheres é Neci. Poeta, jornalista, político, escritor, delegado de polícia de Brasília, é o xodó da família. No Distrito Federal gozou e goza de prestígio. Ocupou a Secretaria Adjunta de Segurança Pública, foi diretor presidente da Codeplan e, depois de aposentado, passou a integrar movimentada e disputada banca de advocacia no Distrito Federal.
O FOTÓGRAFO
Papai sustentou a todos nós trabalhando na roça e, nos dias de feira, tirando retratos do povo. Fotografava o que aparecesse, namorados, casados, bêbados, desocupados e até defuntos.
Certa vez, já no fim da feira, com algumas lapadas de cachaça no quengo degustadas no bar de Mirô Arruda, foi procurado para fotografar um morto. O defunto ia sendo levado para a igreja onde receberia as últimas homenagens, porém no meio do caminho houve a pausa para a fotografia.
Papai focou a máquina no defunto e, antes de apertar o botão, o advertiu: “Não bula com a vista”.
Meu pai trabalhava muito para sustentar a família, mas também gostava de reunir os amigos em casa e no bar de Arlindo para festejar a vida. As farras, às vezes, varavam as noites.
Na década de 70 o ex-deputado Antônio Nominando Diniz ajudou a criar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e convocou papai para ser o seu presidente. Ele assumiu e morreu presidente em 24 de dezembro de 1984.
Foi um homem de valor, fiel aos amigos, honesto além da conta, que embora sem muito estudo, jamais abriu mão da educação dos filhos. Dos nove que teve com mamãe, só não concluíram curso superior os que não quiseram.
A MORTE
Primeiro chegou o recado: Aguardem seu pai pela manhã aí em João Pessoa.
O velho saíra de Princesa por volta da meia noite. Vinha na ambulância que riscou o chão do Ernesto Geisel às 6 da manhã do dia 20 de dezembro de 1984.
Eu e Edmilson estávamos a postos, como sempre estivemos quando o velho chegava à Capital.
Só que dessa vez ele chegava deitado na cama da ambulância, abatido, magro, cansado, com jeito sofrido.
-O que aconteceu com o senhor? -, perguntei alarmado.
-A morte do meu menino me abalou muito.
Referia-se a Robertinho, seu primeiro neto e a quem praticamente criou, morto cinco dias antes por um câncer.
Robertinho tinha oito anos.
Eu não acreditava no que via.
Aquele homem deitado e cansado não era nem a sombra do taludo sertanejo. Nem o farrista que secava as prateleiras do Bar de Arlindo nos dias de folga.
Sempre foi um cara durão, trabalhador incansável, homem do eito, acostumado a derrubar um partido de jurema preta numa semana, ele sozinho com sua foice de aço curtido fabricada por Firmino Ferreiro na sua forja movida a carvão de lenha. Era um senhor envelhecido precocemente, abatido e alquebrado antes de completar 68 anos.
Quando mais jovem, na roça da juventude, tomava café da manhã com beiju. E a “manteiga” passada no beiju era pimenta malagueta esmagada.
Levamos ele ao Hospital Samaritano, onde, cansado, implorava por um cigarro.
Ainda hoje me arrependo de não ter lhe dado um cigarro de fumo Arapiraca para ele dar umas tragadas.
Teria morrido feliz.
No dia 22, o médico Mazureike Morais visitava um amigo internado no mesmo hospital. Acompanhava o senador Humberto Lucena, que ao saber da internação do pai dos jornalistas Tião e Edmilson, achou-se na obrigação de conversar com o doente.
– Você sabia que ainda é meu parente? -, perguntou o senador.
E papai:
– Saber eu sabia, mas nunca disse a ninguém porque não gosto de dizer que sou parente de gente famosa.
No dia 23 o cansaço aumentou. Papai foi entubado.
No dia 24, véspera de Natal, o velho Miguel Lucena, fotógrafo lambe-lambe e líder sindical, o homem das roças e das rodadas etílicas, das serestas ao luar e da solidariedade incontestável aos seus liderados da roça, morreu.
Eu chorei como um menino novo.
E desde aquele dia, nunca mais gostei da Noite de Natal.
3 Comentários
😔
Que tocante, Tião.😢
Senti a sensibilidade de sua narrativa, mostra que você foi um bom filho.