opinião

  A maldição de Princeza

12 de novembro de 2023

 

  Aldo Lopes de Araújo

 

Até hoje ninguém sabe quem achou aquela garrafa quase enterrada na areia três léguas antes do rio Pajeú desaguar no São Francisco, muito menos quem a esqueceu numa mesa da única hospedaria de Flores, cuja proprietária, anos depois, teria fechado negócio com um viajante que se disse fissurado em antiguidades. Impossível determinar por quanto tempo a garrafa passou de mão em mão até chegar ao nosso conhecimento. Sabe-se apenas de um certo Hildebrando Frazão Papadonzela, médico, autor do manuscrito em letras quase ilegíveis, e sem data, achado a salvo dentro do recipiente. O tempo da ocorrência dos fatos, pelo visto, é um dos grandes problemas deste relato recheado de mistérios e baseado única e exclusivamente nos hieróglifos do doutor descrevendo os horrores da peste e seus malogrados esforços na tentativa de aplacá-la.

Pois bem: quando a doença fez seu primeiro defunto em Princeza, já havia descido gente da serra do Espírito Santo e do Livramento para se enterrar e ninguém sabia. A partir de então, ventanias estranhas passaram a assoprar com uma frequência assustadora, e o povo acreditava que a desgraça viajava montada nelas. No dia em que um pé de vento quente arregaçou as lonas das barracas e cobriu a feira da vila de cisco e pó, as mulheres e as crianças se recolheram depressa, os homens tiraram os chapéus, olharam em direção ao cimo das serras e se persignaram, como se já soubessem do perigo a rondá-los pelas cercanias. Urubus foram vistos planando no ar amorrinhado das correntes ascendentes, mas ninguém ali tinha autoridade nem poderes premonitórios para afirmar que aquelas aves vinham na sombria condição de mensageiras da morte.

Naqueles idos, o transporte era feito em penosas jornadas sobre lombos de cavalo e bestas de carga, e foi assim que o doutor Hildebrando Frazão Papadonzela deu com os costados na vila, numa época em que a medicina nesses socavões era associada aos astros e à bruxaria. Além do mais, os insumos para a manipulação dos remédios eram tão raros quanto a pólvora, quase um mistério, como mistério continuou sendo por muito tempo aquele homem e sua maleta cheia de frascos, agulhas, tubos de ensaio, um instrumento de escutar o coração e a lanceta para fazer sangrias e sarjar caroços. Curiosos fingiam dores lombares só para sentir nos couros a dormência quando o doutor passava o algodão embebido num líquido da cor do pôr do sol. Outros se queixavam de espasmos respiratórios, então o doutor destampava um frasco contendo vapores do amanhecer e os submetia a poderosas inalações. Terminada a consulta, voltavam para casa aliviados e com uma certeza: aquele homem engarrafava orvalhos e nevoeiros. Os febris, no entanto, foram os únicos que tiveram a oportunidade de ver a coluna de mercúrio subindo dentro do tubo de vidro que o doutor botava debaixo do braço deles, mas muitos atribuíam a visão do fenômeno aos seus próprios delírios.

Três grandes surtos arrasaram Princeza, como se Deus tivesse mandado a bomba a prazo, em três pagamentos, sendo um desconto de pecado para cada geração. Data dessa época o desaparecimento definitivo da moeda. Passou-se a aceitar tudo como forma de pagamento, menos dinheiro, por mais limpas que fossem as moedas, por mais novas que fossem as notas. Elas vinham de longe e quase sempre eram conseguidas a duras penas, daí trazerem em si suor e sangue, cavalos velozes no desembesto do mundo das doenças matadeiras. As recomendações do doutor baixaram na vila com força de mandamento divino, de édito real. Assim, ninguém quis mais pegar em “couro de rato”, com medo do contágio. As palavras daquele homem de ciência se propagaram rapidamente e ficaram tão entranhadas na memória da população que a feira em poucos dias se converteu no paraíso do escambo, ponto de convergência dos desejos de todo mundo, da conveniência de quem traz o refugo, as sobras do que possui, para as negociatas da troca.

Os ciganos apareceram num dia qualquer ao amanhecer, e vieram com suas mulheres, e estas, num instante, como num passe de mágica, viraram madames da quiromancia, e filas enormes se formaram diante das tendas improvisadas. Vorazes negociadores, os homens se perderam nos labirintos da feira, aos gritos, apregoando relíquias e quinquilharias, e as singularidades quase imperceptíveis de seus animais. Final da tarde, hora do balanço e de dar o fora, ainda tiveram o olho grande e a falta de vergonha para se aproveitar da boa-fé do doutor que lhes entregou sua burra canindé, de montaria, com arreio e tudo, crente que estava recebendo em troca um legítimo violino Stradivárius. Quando os estradeiros foram embora, o doutor percebeu que tinha em mãos uma reles rabeca velha e imprestável. Outro negócio escroto que ficou na história foi a caneca de latão suja e azinhavrada que um deles jurou ao fazendeiro Ernesto Antas se tratar do Santo Graal. Católico doente, o homem se entusiasmou tanto com a propaganda do cigano que deu uma pepita de ouro de quase meio quilo pelo vasilhame.

Os enterros ocorriam sem ninguém para acompanhar. As poucas pessoas que resistiram em permanecer na vila sequer abriam as portas para contemplar as redes e os caixões passando. Ruas vazias testemunharam funerais paupérrimos descendo rumo ao seu destino, embora no velho manuscrito conste apenas a vaga referência a um homem solitário carregando um morto embrulhado num lençol, porque teria faltado a solidariedade de alguém para agarrar o caibro na outra extremidade da rede. Um morto pesa muito e de tanto pesar espadua e acabrunha qualquer vivente, sobretudo quando se trata de uma criatura que tinha tudo para se tornar um grande personagem, mas, por desatenção ou desídia do narrador, acabou no limbo do anonimato. Além do mais, o sumiço dos livros de registros da igreja tornou impossível a identificação das famílias cujos membros teriam tombado, um após o outro, como efeito dominó. Assim, os derradeiros a bater as botas precisaram da caridade alheia para serem retirados de seus leitos e jogados no covão. Em todas essas casas, o doutor mandava passar a chave e pintar uma cruz de cal na fachada para ninguém dali se aproximar.

A falta de panos como o madapolão obrigou as pessoas a revirar sótãos e quartos de despejo no penoso trabalho de ressuscitar catrevagens e velharias. Assim, as rocas das fiandeiras ganharam vida e se meteram a produzir. As mulheres se fizeram à cata dos algodões e os descaroçaram e os meteram em fusos e fiaram e bordaram e bateram bilros, e as viúvas negras teceram tramas e mais tramas no difícil e doloroso ofício da feitura das mortalhas. O preto passou a ser a cor das ruas, das pessoas zanzando cabisbaixas, da água das talhas tingidas no moído das madrugadas sem fim. Os lajedos da Moça Branca também ficaram de luto, quaradouro onde as mulheres estendiam os panos retirados dos caldeirões ferventes. Naquele ritual de desconsolo, elas entoavam cânticos de morte, enquanto borravam de preto o cinza-claro do musgo sobre as pedras. De longe dava para ver as manchas escuras, testemunho de um flagelo que o acaso deixaria para as prováveis gerações futuras.

Afora as efemérides da igreja e a feira de troca, não havia outra diversão digna de registro na vila. Tinha a casa de jogo de Ernesto Antas e o pastoril profano de Tião Nazário, mas não ficaria bem para a crônica moralista local a referência a esses dois antros de vadiagem e perdição. Todavia, como fato é fato, e dele nenhum registro deve se furtar, faz sentido a alusão àquela casa de jogatina e ao seu dono, o mais assíduo e generoso cliente das meninas de Nazário a ponto de, vez por outra, reservar para si um cordão inteiro, pois somente assim daria cabo das precisões do corpo no correr de uma tarde. Hoje ele papava o cordão azul, semana seguinte era a vez das pastorinhas do encarnado. Quando o dinheiro em espécie desapareceu do mapa e os viciados se viram impedidos de fazer suas apostas, Ernesto Antas esbandalhou cadeiras e mesas a golpes de murro e patadas. Nesse dia ele subiu até a capela, onde se recomendou à Virgem do Bom Conselho, depois rasgou a feira ao meio sem comprar nada, e, quando já estava metido por debaixo das anáguas das meninas de Nazário foi assaltado por um pesadelo: lembrou-se que era podre de rico, mas não tinha um centavo no bolso.

O homem perdeu as estribeiras quando se viu na pindaíba, e aos gritos ameaçou o doutor de morte. Teve tanta raiva que, diante de vinte garotas estateladas, fez uma doação ao pastoril, somente a elas, de uma área de terras equivalente hoje ao município de Manaíra, com escritura e tudo. Poucos dias depois contraiu a peste. Chamado às pressas, o doutor fingiu desconhecer as ameaças do homem e foi logo lhe aplicando compressas e cataplasmas e fez-lhe uma sangria tão abundante, que a auxiliar achou que ele estava aproveitando a oportunidade para se vingar. Dia seguinte, depois de uma difícil e dolorosa punção nos tumores, esticou as canelas aquele que em vida se chamou Ernesto Antas Arapapaca. Soube-se depois que recebera dinheiro. As notas tinham entrado na vila escondidas nos caixotes de um comboio de mulas tocado das regiões de seus domínios, do algodão catado pelos quilombolas, das rendas dos garimpos e dos gados espalhados pela vasta extensão de terras, tão grande a ponto de caber dentro dela metade da província da Parahyba.

A vila começou a murchar aos poucos, na medida em que a feira também minguava, sem falar no movimento parado do barracão do pastoril. Tião Nazário tirou um fiapo de carne preso entre os dois dentes de ouro, quebrou o palito e mandou as meninas encurtarem seus vestidos. A ordem era caprichar nas danças, mais libertinagem nas coreografias. Ele sabia que o medo da peste só não era maior do que a tara e a secura daqueles homens que varavam léguas somente para vê-las dançar e terem o privilégio de poder se deitar com elas. Redes e mais redes desciam no rumo do covão e não mais se ouviu o barulho de matracas, tampouco o dobre dos sinos da capela, agora servindo de chiqueiro para os bodes que ali dormiam e saltavam por cima dos santos no altar e matavam a sede na pia batismal. Enquanto isso, Tião Nazário foi visto se acercando das pastorinhas quase nuas a dançarem para uma corja de irresponsáveis. Ganância dele em permitir que os patifes, em sua maioria forasteiros, prendessem dinheiro sujo, “couros de rato”, nas alças dos corpetes e nos elásticos das vestes mais sumárias daquelas doces criaturas.

Nunca fora do agrado da Igreja o pastoril do homem que deu nome quase santo àquela cafua de perdição, mas disfarçadamente dele recebia dízimos e generosas contribuições. Assim, no gozo de tão infame condescendência, Nazário tocava a vida, intocável, na fuzarca arretada dos dois cordões. A fama de seu pastoril correra mundo, e nem o avanço da peste foi capaz de jogar água fria na fervura delas, no fogo dos machos que as procuravam como pepitas de ouro e gemas preciosas. A vila ficava num ponto equidistante entre a serra da Jaramataia e a estrada de Misericórdia e Cajazeiras, rota de aventureiros, caçadores, vaqueiros, negociantes, garimpeiros, ciganos e salteadores, todos no faro das belas e alegres meninas do pastoril.

Tida como a Babel do troca-troca, Princeza perdeu sua célebre feira depois que a peste bateu a aldrava de uma vez e as ciganas ficaram horrorizadas quando viram nas mãos dos consulentes aquela estranha coincidência de linhas e de destinos. O mundo era um curral de porteira aberta e parte do gado já se tinha ido; o gado, os donos do gado, os de posses, homens de negócio, e outros inclassificáveis, que eram tantos, foi grande a debandada. Assim, no primeiro Domingo de Ramos do século XIX, a feira se acabou por decreto natural dos próprios feirantes. Eles ficaram perplexos quando viram aquela infinidade de ratos abandonando as casas para morrer no meio das ruas. De corpos arqueados e pelos em pé, os gatos abandonaram os telhados, bicas e borralhos e se danaram nos matos para nunca mais voltar. O doutor aproveitou a ocasião para fazer seu derradeiro prognóstico. Gastou uma manhã inteira aos berros pelas ruas quase vazias de Princeza a anunciar que os bichos atenderam a um apelo do instinto, como se estivessem dando um recado. Era hora de todos deixarem suas casas, fecharem as portas e jogarem as chaves no beleléu.

A doença entrava pela porta da frente e os sobreviventes saíam pelos fundos, depois de apanhar apenas o necessário, o que podiam carregar. E lá se foram todos para o desterro. Dizem que Tião Nazário, na pressa de partir, abandonou sua esposa moribunda. Muita gente fez como Nazário. Uns, na cara limpa dos dias; outros, na surdina. Coisas cabeludas aconteceram no correr dos últimos dias de Princeza, mas o providencial freio na língua talvez tenha sido a grande sacada dessa história. A roda do mundo gira depressa e para acompanhá-la só deu tempo registrar o desespero e a correria das meninas do cordão azul, a metade apenas, na ânsia de seguir os passos de Tião Nazário. As outras garotas, juntamente com as demais do cordão encarnado, tinham sucumbido na ceifadeira da epidemia.

Quem teve coragem de olhar para trás, deve ter visto uma figura encapuzada vagando pelas ruas, de casa em casa, a visitar os doentes abandonados à própria sorte. Não havia quem dissesse que a pessoa por debaixo daquelas roupas, de luvas e botinas e uma máscara com um bico horrível, era o doutor Hildebrando Frazão Papadonzela. A derradeira impressão que levaram dele foi de uma aparição, pássaro sem asas, cegonha desengonçada do inferno, lanceta na mão para furar os bubões apodrecidos dos doentes, se defender de intrusos contrários aos tratamentos e afugentar urubus e toda sorte de bichos carniceiros rondando ao redor.

A partir de então, a capoeira tomou conta das ruas, as raízes das árvores invadiram as construções, estouraram pisos e racharam estruturas. O esmeril do tempo entrou nas casas comendo portas, janelas, móveis, linhas, caibros, ripas, oratórios, santos, o coreto da praça e o altar-mor da capela da Virgem do Bom Conselho, esculpido em madeira nobre e folheado a ouro. Nada sobrou. O mato fechado por fim cobriu a silhueta do casario e apagou o traçado das ruas. Um abandono tão filho da mãe desabou sobre Princeza que, um dia, muitos anos depois, o cachorro de um caçador acuou a vila. O latido solitário chamou a atenção do homem que se descobriu perdido na mata e cometendo o sacrilégio de testemunhar aquela intimidade de abandono. Então ele teve o cuidado de perguntar, e o fez aos gritos, quem ali naquela solidão e silêncio podia mais do que Deus. Ninguém respondeu.

Dizem que o caçador espiou ao longo do mato grosso tomando conta de tudo e pacientemente esperou. Cauteloso, subiu numa árvore, uma das muitas que, entre baraúnas, mandacarus e juremas, cobriam os vestígios da rua central, e gritou de novo. Sem resposta, apontou o cano do mosquetão para lugar nenhum e apertou o dedo. O tiro ecoou nas serras e assustou macacos e saguis entorpecidos de calor entre as árvores e os tijolos das ruínas, mas nada aconteceu. Então, ele desceu da árvore, conferiu no embornal a caixinha de espoletas, o resto de pólvora, apalpou por fora o bolso do casaco e sentiu o volume de algo que teria achado nas ruínas. Depois disso, o homem chamou o cachorro e partiu. Ao cabo de uma semana de jornada, exausto e faminto, o coração quase pulando pela boca, assim ele chegou a um lugar grande, de quatro igrejas, disposto a se apresentar às autoridades e relatar a sua estranha descoberta. O nome da cidade não foi revelado, bem como tantos outros detalhes e situações dessa história pouco ou quase nada confiável.

E isso é tudo.

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4 Comentários

  • Reply Miguel Lucena 12 de novembro de 2023 at 20:04

    Os judeus nunca imaginaram que o dia do juízo final seria em Princeza, o oco do mundo.

  • Reply Isaac 12 de novembro de 2023 at 20:06

    Vou assistir o filme….
    Sem condições de ler….

    • Reply Sebastião 12 de novembro de 2023 at 20:27

      Deixe de preguiça

  • Reply Airton Calado- Campina Grande 13 de novembro de 2023 at 08:49

    Essa narrativa me prendeu do começo ao fim, que no fim fui surpreendido com o fidbak, era umcauso, uma estória muito bem contada, com começo meio e fim, grande contador de estória

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