opinião

A São Severino da minha infância 

2 de julho de 2023

 

Por Chico Pinto

 

Hoje, amanheci com uma saudade “danada” da minha infância na Rua São Severino, no Bairro da Areia, lá em Sousa.

 

Rua tranquila, recheada de gente da melhor qualidade, bons vizinhos que, apesar das nossas peraltices de criança, nunca nos agrediam a não ser com a frase famosa e por demais temida: “menino vou dizer a sua mãe que você fez isso e aquilo outro”.

 

Da nossa parte a única saída era se oferecer para pegar um “galão” feito com lata do querosene Jacaré, enchê-lo com água do chafariz de dona Mariquinha, mãe do grande radialista Barbosa da Silva, em troca do perdão pelo malfeito.

 

Muitas delas aceitavam mas nunca deixavam de nos recompensar o “castigo” com uma banana, manga, macaúba ou um pedaço de rapadura.

 

Oh! vida boa aperreada!..

 

A São Severino nos servia de palco para as nossas molecagens. Uma que nos deixava eufórico era quebrar o portão do muro de dona Chicolinha, a vendedora de lenha, na base da “tijolada” em represália ao castigo que ela nos impunha quando íamos pegar a lenha para cozinhar o almoço.

 

Dona Chicolinha não era moleza não!

 

Com a sua benevolência de “Madame Mim” fazia questão de colocar nos nossos braços aquelas “lachas” de aroeira mais pontiagudas que deixavam os nossos magrelos braços em estado de penúria…

 

…E tome tijolada no seu portão!..

 

Na São Severino aprendi a escrever pela primeira vez o meu nome, após dona Alcinda de Vavá da Sorveteira quebrar umas quatros réguas na minha cabeça, até o dia que finalmente aprendi a colocar no caderno o meu nome.

 

Depois de dona Marinheira,  em Pombal, menino desatencioso, só temia os “cascudos” dona Alcinda, uma cearense de Sobral, que nos alfabetizou e nos obrigou a estudar de verdade.

 

Um dos meus maiores pesadelos foi aprender, na base da palmatória, a assoletrar o nome de Joaquim.

 

Por mais que tentasse só saia um maldito “Jo-tra-ja-pe-te-qua-im”. E tome castigo, puxão de orelha e nada de Jo-a-quim.

 

Ainda hoje não sei o porquê dessa sua fixação nesse tal de Joaquim, que só passou pela minha vida quando já estava no Colégio Estadual e ele como o diretor – essa é outra conversa que deixo pra outro dia.

 

Na São Severino também aprendi a nadar por conta da sua proximidade com famoso Poço do Mulungú”, a nossa praia do Rio do Peixe.

 

Foi na São Severino  que surgiu a família “Buraco”, criação e maldade nossa.

Seu Manoel, um pequeno agricultor. Saiu de um dos sítios da redondezas com o objetivo de educar a filharada e, para manter a família, colocou uma bodeguinha  que de tão pequena resolvemos batizá-la de “buraco”.

 

Com o seu esforço conseguiu com os poucos recursos do seu “buraco” (opa)  educar os filhos entre os quais Manoel e Quer do Buraco.

 

Também ali só tinha menino bom a começar pelo Nêgo Dascuia, Nem, Zé de João Mãozinha, Chicote, Galego e Douglas de Zé Rafael; Bruguelo de Dedim, Chico de Natureza, Juranda e Nelson de João Patrício; Aldeone, Geraldo e Benedito Ramalho, Nivaldo do Barbeiro, os bons meninos de Seu Raimundo Barbosa, onde o mais educado e famoso era Lêpa e tantos e tantos outros, hoje todos avós como eu.

 

Saudades da Rua São Severino, que para mim, jamais será coronel Manuel Gonçalves, ousadia desastrosa da política, já que o homenageado que ficou no lugar do Santo protetor das cobras, só passava por lá em busca de um cangote cheiroso lá pras bandas Catarinas para cuidar da sua cobra.

 

Na São Severino todos se conheciam, brigavam e se respeitavam.

 

Se por acaso aparecesse um valentão de outra rua, com certeza de lá saia domesticado e, alguns deles, até se tornavam “carteiros do amor” pois só seria bem recebido pela turma após levar os nossos biletins amorosos para as meninas da sua vizinhança.

 

Foi na Rua São Severino que também aprendi a rodar de bicicleta.

 

Lembro que quando passei no Exame de Admissão, para o Colégio Comercial, o mais difícil da cidade, o velho Duca todo orgulhoso me deu de presente uma “Monark Rei Pelé”, a primeira  com aquela circunferência no aro (opa, dinovo).

Passei a noite sem dormir esperando o dia amanhecer para inaugurar a “mimosa”.

 

Eis aí a minha burrice.

 

Ganhei o presente num dia e no outro já não o tinha mais.

 

Explico: em vez de me preparar para a primeira aula do Colégio de “Seu Toim”, peguei a minha, digo quase minha,  joinha e de fininho fui terminar o passeio nos Prazeres de seu Ildefonso.

 

Nesse dia chovia bastante, tinha lamaçal em toda a estrada na época de massapê e, por azar, quando passava pela Fabiana, embaixo do frondoso pé  de cajarana, os pneus furaram o que me obrigou a carregar a Rei Pelé nas costas, até em casa, cerca de cinco quilômetros de distância, toda cheia de lama e com os pneus em frangalhos.

 

Pior ainda: por conta do atraso do horário perdi a aula inaugural do meu primeiro ano.

 

Na mesa do almoço, o velho Duca apenas olhou pra mim, com aquele seu vesgo olhar, como se quisesse dizer que o meu esforço para passar no Admissão de nada mais valia, tudo por conta da minha irreparável e irresponsável atitude.

 

Perder um dia de aula para ele era crime inafiançável.

 

veja só: ele de pirraça e ainda orgulhoso pelo meu sucesso, nada falou, não reclamou e sequer mandou que eu lavasse a bicicleta.

 

Ele mesmo cuidou dessa tarefa.

 

Só que no dia seguinte, ao acordar, o canto mais vazio da casa era o local onde a bicicleta foi “dormir”.

 

Dormiu nada!..

 

Bem cedinho, sem sequer dizer adeus desapareceu da minha vida até hoje.  Não sei nem o seu destino.

 

Ao cair na besteira de perguntar ao velho pelo quase presente, ele simplesmente olhou  para dona Naninha, minha santa mãe, que, com cara de tristeza, ainda tentou amenizar a situação, mas de nada adiantou.

 

Ele com poucas palavras deu a sua sentença:

 

“Foi um presente de pai feliz e orgulhoso, para facilitar sua vida na ida para o Colégio, mas vi que em vez de lhe ajudar só irá lhe atrapalhar. Devolvi a bicicleta e, a partir de hoje, você continuará indo a pé para a aula e só espero que você não falte. Se souber que se atrasou ou deixou de cumprir com suas obrigações você vai pagar por todos os seus pecados.  Perdoados pela tola da sua mãe, mas por mim, não”.

 

A noite toda dona Naninha não deixou o velho Cabo dormir convencendo-lhe a não dar aquela merecida surra por perder o meu primeiro dia de aula.

 

As ordens foram cumpridas ao pé da letra, ou melhor, com medo de “espinhaço”.

 

Boas lembrancas, tenho sim!

 

E muitas e boas histórias, afora a saudade, continuo tendo da minha saudosa Rua São Severino.

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1 Comentário

  • Reply CICERO DE LIMA E SOUZA 3 de julho de 2023 at 03:26

    Velho CHIGO, muitas lembranças boas.
    Mas já que você vai escrever outras lembranças, fale do nosso saudoso amigo PEDRO MORERIA com quem você, principalmente, conviveu anos na redação do jornal e nos bares da vida.

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