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Coisas que vivi e agora posso contar

16 de abril de 2018

A primeira experiência fora de casa não foi como ele esperava. A meia noite um cabo mal encarado o despertou do sono no dormitório dos soldados e  mandou limpar os banheiros, coisa que jamais imaginara fazer no tempo de liberdade sem vigilância. Obedeceu resmungando. E excomungou a si próprio por ter escolhido servir o exército brasileiro.

Não era exatamente o que imaginara. Em vez do fuzil e da farda, estava em plena meia noite, de camiseta e calção, jogando água em latrinas de colegas e de superiores, limpando bosta e enxugando o chão.

A humilhação só não foi maior porque os mais antigos disseram que brevemente ele se acostumaria, como se acostumaram os que chegaram antes.Achou difícil,mas não tinha mais jeito. Pior seria desertar e ser preso.

A corneta tocou a alvorada das cinco horas. Tuta olhou o dormitório despertando, levantou-se da cama e foi testemunhar o nascer do sol. Era o mesmo do seu sertão, até com mais verde, mas era um verde diferente, sem o cheiro da sua terra.

A ordem era levantar, forrar as camas, vestir a roupa de educação física e entrar em forma.Todos em posição de sentido receberam a primeira visita do sargento Honório, baixinho, magrinho, antipático, pedante e metido a valente. “Ah se eu te pego lá no sertão, na ponta da peixeira”, pensou o filho de Seu Miguel, controlando a valentia.

O que diabos fora fazer ali mesmo?

Queria um emprego, qualquer um.Viu Cabo Lira chegar à cidade com farda verde oliva, dirigindo um fusquinha, pagando rodadas de cerveja para todo mundo e sentiu inveja. O exército era o caminho. Não só Cabo Lira, outros voltaram a passeio com fitas de cabo, como Cabo Torres,Cabo Bixota, no meio deles um sargento, Sargento Soares, as mães e pais da cidade oferecendo suas filhas prendadas em casamento,um verdadeiro furor.

Ele próprio fora dispensado pela moça que lhe despertara uma grande paixão, porque os pais dela não aceitavam o namoro de uma filha de fazendeiro com um pé rapado do Cancão. Claro, a moça até que se dera bem, os dois viveram momentos intensos por detrás do matadouro da cidade. A coisa foi interrompida depois que o marchante Veridiano viu tudo de cima do muro e encheu a rua com o boato exagerado de que o casalzinho estava prestes a derrubar uma das paredes da matança.

E na noite seguinte, lá estava ela passeando de mãos dadas com um rapaz de boa procedência, inocência pura, mão na mão, rua acima e rua abaixo feito um anjo de candura.

Foi a gota d`água.

A viagem para Recife foi a mais longa da sua vida. O ônibus velho parava a cada quilômetro até chegar na rodoviária de Pernambuco por volta da meia noite.

A mãe enchera um saco de pano com cocadas, galinha temperada, rapadura, queijo de coalho e fubá. O velho mexeu no baú e arranjou o dinheiro para os primeiros dias. Dali foi levado à casa de Pedrina, conterrânea residente num casebre de palafitas sobre a maré, e no dia seguinte apresentou-se no quartel, sob as bênçãos de Cabo Lira, o responsável pelo nascimento do civismo na turma pobre de Princesa.

A saudade doía no peito.

Toda semana uma carta e uma ida à Rodoviária para receber notícias e algum brinde de casa.

Era da rodoviária para o quartel, com uma saída semanal. Nos dias de internamento, muita ordem unida, aulas teóricas sobre guerra e moral e cívica , além das aulas práticas onde se aprendia a desmontar e montar as armas.

A solidão só não era maior por causa dos conterrâneos incorporados. Ernani, Benami, Ademar, Osman, os recrutas.E os já com patentes, que de vez em quando apareciam para dar alguma força espiritual aos companheiros mais novos.

Em frente ao quartel dos Guararapes havia um cinema que dava acesso gratuito aos soldados. Mais acima, a estação do trem que também permitia a entrada de militares fardados sem pagar nada. Nas folgas, corriam todos para os trens e seguiam viagem de Socorro a Jaboatão,de Jaboatão ao centro, passando pelas estações de Cavaleiro, Afogados e Sucupira.

Os que já conheciam Recife saíam dos trens e iam beber cachaça nas casas de conterrâneos residentes nos bairros próximos às estações. Ou então iam pegar raparigas nos forrós do Pacheco.

Durante seis meses, Tuta só fez comer, dormir e obedecer os comandos do sargento Honório e do Cabo Atanásio. Por isso engordou. Chegou ao quartel pesando 65 quilos e seis meses depois já pesava 94.

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3 Comentários

  • Reply Dedé Messias 17 de abril de 2018 at 06:51

    Muito bom o enrredo, não sei o sofrimento.

    • Reply Tião Lucena 17 de abril de 2018 at 07:39

      Rapaz, estou tentando escrever mas não sei se está prestando. Obrigado pela observação. Aguardo novos comentários.

  • Reply Candieiro 17 de abril de 2018 at 09:35

    Eu gostei muito da narrativa, lembra um pouco o estilo do Mário Vargas Llosa

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