opinião

Coitado de Carlos

6 de junho de 2021

 

Marcelo Torres

O morto segue os passos de Carlos.

Dia e noite é isso.

O morto aparece atrás de portas,

atrás de troncos, debaixo da cama,

lá em cima da amendoeira.

O morto aparece dentro do guarda-roupa

usando o terno de Carlos.

O morto se esconde no armário de Carlos.

O morto deita na gaveta do arquivo

de aço de Carlos.

Coitado de Carlos,

vai se olhar no espelho e vê

o morto atrás dos seus ombros.

Carlos senta no escritório,

e o morto atrás da cortina.

Carlos abre a cortina,

o morto o espia da janela.

Carlos não dá entrevista

porque sempre vê a caveira do morto.

Carlos rasga papéis e os atira no morto.

Os papéis somem no ar,

e o morto ri da cara de Carlos.

No restaurante, o morto fica atrás

da parede de vidro comendo

com os olhos a comida de Carlos.

Na cama, com a mulher,

Carlos deita de lado,

e o morto em pé à cabeceira.

Com as teúdas e manteúdas,

Carlos só deita por baixo,

que ele não é mais menino,

vê o morto no telhado,

doido pra pular em cima dele.

Para Carlos, o amor se refugiou

abaixo dos subterrâneos.

Ele diz que o ódio não existe.

Coitado de Carlos.

Estéril de abraços.

Carlos acredita é no medo.

Carlos tem medo, e não é pouco.

Carlos teve muito medo da mãe.

E mais medo ainda do pai.

Carlos tem medo da esquerda,

da direita, do centro.

Nem gauche na vida

nem tinta guache.

Carlos chega a setenta e oitenta

e não sabe o que é.

Só sabe é que tem medo.

Medo de ditadores e democratas.

Medo da máquina e dos mares

dos desertos e grandes sertões.

Carlos tem medo da polícia,

da pontifícia e da pudicícia.

Carlos tem medo dos homens presentes.

Carlos tem medo dos ausentes.

Especialmente agora de um

anjo torto

um morto

que ele mesmo matou.

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