opinião

EPISTEMOLOGIA NEOLIBERAL

21 de maio de 2023

 

Por GILBERTO CARNEIRO

NUMA manhã chuvosa de outono resolvi procurar uma pessoa que, no passado, modéstia às favas, ajudei bastante. No afã de uma oportunidade profissional, a inocência guiou a esperança de que o espírito solidário e retributivo se manifestasse no seu coração. Sequer fui recebido.

Por alguns dias fiquei sob os efeitos de uma angústia aterradora, mas com o tempo passei a compreender que, na luta pela sobrevivência, principalmente quando se está no chão da roda gigante da vida, apelar para emoções grandiosas, como amor e gratidão, é uma perda de tempo, isso sob a ótica epistemológica neoliberal, pois neste modelo se você não acenar para o egoísmo das pessoas, não lhe darão a mínima.

E no mundo contemporâneo esta realidade predomina no seio das relações sociais. Outro dia fiz a leitura de um julgamento que revela o grau de insensibilidade da nossa sociedade: “Se precisar pedir ajuda a um suposto amigo, não se preocupe em lembrar a ele a sua assistência e boas ações no passado. Ele encontrará um meio de ignorar você. Em vez disso, revele algo na sua solicitação que o vai beneficiar, e exagere na ênfase. Ele reagirá entusiasmado se vir que pode lucrar alguma coisa com isso. Ao pedir ajuda, apele para o egoísmo, para a simples realidade cotidiana das pessoas, jamais para a sua misericórdia ou gratidão”.

Nesta mesma toada de inversão de valores, Caio Tácito, senador romano, pronunciou certa vez: “os homens apressam-se mais a retribuir um dano do que um benefício, porque a gratidão é um peso, e a vingança um prazer”.

Uma historinha ilustra bem esta lei transversa aplicada, em relevo, nas relações de poder. No início do século XIV, um jovem chamado Castruccio Castracani passou de soldado comum a senhor da grande cidade de Lucca, na Itália. Uma família da cidade, “os Poggio”, tinha sido o instrumento responsável por sua ascensão, porém depois que Castruccio assumiu o poder abandonou “os Poggio”. A ambição foi mais forte que o seu sentimento de gratidão. Uma certa vez, Stefano di Poggio, o membro mais velho da família, foi autorizado pelo clã procurar Castruccio, relatar as dificuldades e lembrá-lo da generosidade da sua família para com ele no passado.

Castruccio ouviu com toda atenção as queixas e apelo de Stefano e, ao final da conversa, tranquilizou-o, e pediu que trouxesse toda a família para conversarem sobre suas reclamações e solicitações visando a um acordo. Castruccio disse a Stefano que agradecia a Deus pela oportunidade que lhe deu de mostrar sua bondade, generosidade e gratidão.  No entanto, o que Castruccio tinha em mente era um plano macabro, uma armadilha. Naquela noite, a família Poggio inteira foi ao Palácio. Castruccio havia planejado e orquestrado tudo em comum acordo com segmentos dos poderes da justiça e, imediatamente, mandou prender toda a família “Poggio”. Em poucos dias foram todos banidos, inclusive Stefano. Quando disseram a Castruccio que tinha sido uma coisa terrível destruir aqueles que o ajudaram a ascender ao poder, inclusive Stefano que era seu melhor amigo, respondeu: – “Não executei um velho amigo, mas, sim, um novo inimigo”.

Qualquer semelhança da historinha com alguma realidade que o leitor do “Blog do Tião conheça, será uma mera coincidência, ou não.

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3 Comentários

  • Reply Edmundo dos Santos Costa 21 de maio de 2023 at 08:19

    AS DECEPÇÕES, OBVIAMENTE EXISTEM E SÃO SENTIDAS. POR OUTRO LADO TRAGO EMPRESTADO O RACIOCÍNIO DE MINHA MÃE, QUE ERA EXPRESSADO DA SEGUINTE FORMA: A MELHOR E MAIS SEGURA MANEIRA DE SE EVITAR UMA DECEPÇÃO EM RELAÇÃO AO COMPORTAMENTO DE ALGUÉM QUE NÃO MANIFESTA NENHUMA DIGNIDADE E SE APRESENTA SEM NENHUM SENTIMENTO DE AMOR PRÓPRIO, QUANDO NECESSITA DOS PRÉSTIMOS DE QUEM QUER QUE SEJA, É NADA FAZER PENSANDO NA DENOMINADA GRATIDÃO E ESPERA DE UMA FUTURA RETRIBUIÇÃO. A MAIS ADEQUADA MANEIRA DE OFERECER ATENÇÃO E AJUDA A QUEM QUER QUE, NECESSITANDO, A SOLICITE, É FAZÊ-LO PELO AMOR INCONDICIONAL QUE O CRIADOR A TODOS RECOMENDA OU, DE OUTRO MODO, SOB A RUBRICA DE FUNDOS PERDIDOS. SE O SUJEITO SE DIZ AMIGO DE ALGUÉM E SABENDO QUE TAL PESSOA PODE ENCONTRAR-SE NECESSITANDO DE AJUDA – E ISSO SE APLICA ATÉ A UM DESCONHECIDO – NÃO ESPERA A SOLICITAÇÃO, AFINAL SOLIDADRIEDADE NÃO É SENTIMENTO A SER REQUERIDO, MUITO MENOS IMPLORADO. DIGO, PORÉM QUE AS DIFICULDADE SÃO SUPERÁVEIS E, GERALMENTE, A SOLIDÃO REFLEXIVA, MEDITATIVA, EM REGRA NOS FORTALECE E NOS APRESENTA SOLUÇÕES QUE SÃO MAIS INDICADAS QUE AQUELAS DECORRENTES DE “SOLIDARIEDADES” ANGUSIOSAMENTE SOLICITADAS E DEFERIDAS PARCIALMENTE, JÁ COM CARGAS DE ÔNUS LOTADAS COM DEGRADAÇÕES E OPRÓBIOS A AFRONTAR, ENVERGONHAR E DECEPCIONAR A QUEM DELAS NECESSITA E SE OBRIGA A FAZER USO.
    O FILÓSOFO TERÊNCIO FIRMAVA QUE O HUMANO NÃO O SURPREENDIA. DIGO: A INGRATIDÃO DEVE SER OBSERVADA E SENTIDA COMO SENDO A MERA EXPOSIÇÃO DA DEGRADAÇÃO MAIS PROFUNDA DO COMPORTAMENTO HUMANO. O CONTRÁRIO É A EXCEÇÃO QUE CONSISTE NO APERFEIÇOAMENTO PRETENDIDO POR QUEM, A CADA DIA, BUCA REFORMAS DE CONDUTAS PESSOAIS E LUTA PELA NÃO REINCIDÊNCIA NOS ERROS DE ONTEM.
    BOM DIA!

    • Reply Gilberto Carneiro 21 de maio de 2023 at 14:03

      Esse é o propósito. Fomentar a discussão. Obrigado pela manifestação Edmundo

  • Reply Dilermando Athayde Júnior 21 de maio de 2023 at 10:48

    Muito bacana!
    Me vi, nesse texto.

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