opinião

OVELHA NEGRA

16 de maio de 2023

 

Por GILBERTO CARNEIRO

 

ERA a última noite de um ano cheio de transformações que revolucionava a Paraíba. Ao chegar ao Busto de Tamandaré fiquei um tanto receoso quando observei uma estrutura vertical de metal que as pessoas atualmente insistem em denominar front stage, quando nada mais é que uma “frente de palco”, cuja finalidade é separar os pobres mortais daqueles que possuem poder aquisitivo que os permitem ficar, como o nome designa, na frente do palco. isso é tão comum nos dias de hoje, que mesmo tratando de área pública, este espaço é comercializado a preços exorbitantes que enchem o bolso de empresários, tudo com anuência das autoridades públicas, como é o caso por exemplo do São João de Campina Grande.

 

Mas voltemos ao réveillon, ou melhor às comemorações do Ano Novo de 2011 para 2012. Minha preocupação com o gradil, embora não houvesse cobrança de ingressos, era porque a apresentação principal do Festival Estação Nordeste promovido pela FUNJOPE naquele ano, seria da roqueira mais famosa do Brasil, RITA LEE. Com um estilo irreverente havia sido detida em um show em Aracaju por desacato à autoridade. Rita se incomodou ao ver policiais revistando seus fãs, à procura de maconha. “Vocês não têm o direito de usar a força brutal na meninada que não está fazendo nada. Me dá um baseado desse aí galera”. – gritou no microfone.

 

E ao longo do show minha inquietação se revelou plausível. Em um determinado momento parou de cantar e deu o seguinte recado ao público que estava além da fronteira da cerca que permitia o acesso à frente do palco apenas para convidados: “que porra é essa, que segregação é essa. Galera, invade, pula a cerca”. – gritou. O desconforto foi nítido. A galera parecia estar desembarcando do Granma e adentrando na Sierra Maestra numa espécie de versão hippie da revolução cubana, tamanha a euforia.

 

Foi o ultimo show que tive o prazer de estar presente da maior estrela do rock brasileiro e ícone da banda “os Mutantes”, que também se apresentou no referido Festival, numa data diferente do show de Rita Lee, tendo em vista que saiu do grupo ainda no ano de 1972. Ambas as apresentações ocorreram no Festival Estação Nordeste, criado à época da gestão municipal de Ricardo Coutinho, que possibilitava ao povo ouvir música de verdade, como nas apresentações do “Projeto Música do Mundo” com instrumentais inesquecíveis dentro do Festival, realizado sempre em janeiro, como alternativa aos fest’s verões privados, com seus irritantes safadões, xand aviões e Gustavos Lima da vida.

 

Rita Lee era controversa, irreverente e sarcástica. Sem autopiedade, sua vida foi marcada por três episódios trágicos. Aos seis anos foi estuprada por um técnico que foi a sua casa consertar uma máquina. Inimiga da moral e dos bons costumes, uma certa época testemunhou contra um policial acusado de matar um rapaz em um de seus shows, solo fértil para a polícia “plantar” maconha e a prendê-la, grávida. Em 1991, devido a sua separação do seu eterno amor, Roberto de Carvalho, passou a fazer uso exagerado de álcool e drogas. Certo dia, de tão chapada, despencou da varanda, teve o maxilar esfacelado e perdeu 40% da audição do ouvido direito. Roberto cuidou de sua recuperação. Quando ela tirou os pontos e cantou “Mania de você”, ele a pediu em casamento.

 

A cantora foi a cara do feminismo menos sisudo tornando hino entre as mulheres a música “sexo frágil”, com versos fortes: “Sexo frágil/ Não foge à luta/ E nem só de cama vive a mulher/ Por isso não provoque/ É cor de rosa choque”. Multi-instrumentista, era versátil não só no palco. A personalidade transparente, o ar despudorado e o raciocínio rápido fizeram dela uma figura constante na mídia.  Foi a partir do pioneirismo de Arnaldo, Sérgio e Rita Lee, ainda como integrante dos “Mutantes” que se abriu caminho para o hibridismo no rock brasileiro, com toda a sua irreverência.

 

Quando recebi a notícia da sua morte através de uma publicação aqui do Blog do Tião me senti como na letra de uma de suas canções: (…) “Eu nem sinto meus pés no chão”. Rita Lee estava limpa há quase 20 anos. Quando nasceu sua primeira neta em 2005 tomou a firme decisão de ficar “careta”. Morreu aos 75 anos, em sua casa, se sentindo mãe, ao lado de seus três filhos e do seu marido. Não foi overdose. Pode até ter sido a OVELHA NEGRA da família, mas soube fazer muita gente feliz, inclusive MÃES.

 

 

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1 Comentário

  • Reply 1berto de almeida 16 de maio de 2023 at 17:40

    muito bom. simples e objetivo. vivi tudo isso. um bom texto. disse o suficiente. se diria mais? aí seria outra análise. parabéns.

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