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Tudo em nome da fé

29 de março de 2018

Nesta sexta feira santa, aniversário da morte de Jesus Cristo, hei de lembrar dos jejuns ferrenhos decretados por dona Emília  nos tempos em que dona Emília era viva e cheia de vida e nós, seus meninos, éramos apenas meninos sambudos, inocentes crianças.

Ninguém comia antes do meio dia. E tomar banho, de jeito nenhum. Tudo isso em respeito ao santo homem que fora crucificado por um bando de judeus invejosos.

A tripa roncava de fome. Ficávamos ali, de tocaia, esperando a hora de tirar a barriga da miséria, o peixe cheirando na panela, a panela de bredo fervendo e cheirando. E as lombrigas dando voltas no bucho, reclamando seu quinhão.

Quando o relógio da igreja batia as 12 badaladas, corríamos todos para a mesa grande da cozinha. Dona Emília despejava a fartura e a gente comia tanto, que chega esquecia de rezar.

Dali a pouco, a matraca de Dão Mandu, o sacristão, anunciava o início da procissão do Senhor Morto. Não havia coisa mais linda. As mulheres choravam quando viam o andor nos ombros de quatro ardorosos católicos, escolhidos a dedo pelo padre pelo critério de quem doava mais à igreja, transportando o corpo inerte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era uma tristeza geral. Os sinos não dobravam na sexta-feira. Em vez deles, a matraca fazendo track-track,ritimando os hinos tristes que saíam da garganta inesquecível de finado João Mandu.

Claro que, no dia seguinte, o sábado, vinha a vingança. Todos se reuniam na Rua do Cancão para matar o Judas que traiu Jesus. Pedro Fogueteiro o pendurava num pau bem alto e o explodia com bombas e mosquitos introduzidos nos seus orifícios.

Quando o boneco pipocava, confeitos e balas voavam de dentro dele. E a meninada fazia a festa.

Cada um que quisesse pegar mais.

Os mais velhos apenas olhavam e ficavam a espiar o relógio para ver quantos minutos faltavam para a meia noite. No sábado de aleluia, depois da meia noite, o forró comia no centro. Era dança em cada rua, no clube dos ricos e nos bolos doces dos pobres. E os namoros nos escuros da Lagoa prenunciavam o aumento da população para os próximos nove meses.

Tudo em nome da fé.

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